Painted From Memory (Universal Music)
1998
Artigo publicado originalmente no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 144 (julho de 2008).
Uma década após o seu lançamento, ‘Painted From Memory’ ainda soa sedutor
Em meados da década de 1990, o multifacetado Elvis Costello declarou, em entrevista, toda a sua admiração pela obra de Burt Bacharach. E também o desejo de um dia colaborar com ele. O maestro americano agradeceu pela deferência, mas não deu um passo à frente.
Algum tempo depois, Costello foi convidado para compor a música-tema do filme Grace Of My Heart (no Brasil, A Voz do meu Coração). Teve, então, a idéia de chamar Bacharach para ajudá-lo na empreitada. A belíssima “God Give Me Strength” foi, portanto, concebida a quatro mãos, compasso a compasso, via fax entre os Estados Unidos (onde vive Bacharach) e a Irlanda (onde Costello passava férias).
O ótimo resultado da parceria fez com que ambos se sentissem encorajados para conceber um disco inteiro juntos. Assim surgiu o refinado Painted From Memory, que apresenta onze canções então inéditas da dupla, com a adição de “God Give Me Strength”. E que completa uma década de lançamento esse ano.
Qualquer pessoa que conhecesse minimamente o trabalho dos dois artistas poderia imaginar que a junção da fina ironia das letras de um craque como Elvis Costello às melodias e impecáveis arranjos de cordas e metais de um gênio como Burt Bacharach teria gigantescas chances de acerto.
Pois é. Não deu outra.
Álbum mistura melancolia e ironia à leveza quase pop
Só poderia existir, talvez, uma única ressalva: que Costello talvez não estivesse apto a interpretar os biscoitos finos produzidos por Bacharach. Ledo engano. Com sua voz... hum, peculiar, o sr. Declan MacManus (nome verdadeiro de Elvis Costello) acabou se revelando, surpreendentemente, um crooner... digamos, singular para as novas pepitas do autor de “I Say A Little Prayer”. E ele prova isso já na faixa que abre o disco, a intensa “In The Darkest Place”.
A canção seguinte, “Toledo” (que é o nome de cidade na Espanha), conta a estória de um indivíduo que tenta contornar sua situação com a patroa, depois que esta descobre uma pulada de cerca, através de um recado que a amante deixa na secretária eletrônica da residência: “Não adianta dizer que eu te amo/ e que aquela moça nada significou para mim./ Porque se alguém olhasse nos seus olhos/ não é o perdão que conseguiria ver”.
Em “I Still Have That Other Girl”, o piano de Bacharach e a interpretação pungente de Costello constituem um casamento simplesmente perfeito. Não por acaso, a canção faturou uma estatueta do Grammy no ano de 1999.
Outro destaque é “Tears At The Birthday Party”, cuja letra mostra um homem que começa a lembrar do seu passado, enquanto espia da calçada, desolado, a ex-esposa comemorando o aniversário ao lado do novo marido. E o eu-lírico da narrativa, em um sarcasmo típico de Costello, ainda aproveita para rogar uma praga no seu rival: “Um dia, sei que ele se esquecerá/ de dar os cumprimentos que você espera”.
Aliás, não há uma faixa sequer desse CD que seja dispensável ou mesmo “coadjuvante”. Até mesmo as melancólicas “My Thief”, “What's Her Name Today?” e, principalmente, “This House Is Empty Now” têm o seu (enorme) encanto.
A faixa-título é um capítulo à parte
Costello declarou que estava se divorciando quando escreveu as letras desse álbum. E qualquer um pode perceber que o estado de espírito do compositor inglês acabou, naturalmente, vazando no trabalho. E Bacharach, com a experiência de vários casamentos acabados, também sabe o que é uma desilusão amorosa.
Mas nem tudo é só tristeza e ironia. O disco também têm os seus momentos de leveza quase pop, como “Such Unlikely Lovers”, a linda “The Sweetest Punch” e “The Long Division”, bastante identificadas com o estilo easy-listening de Burt Bacharach.
A faixa-título, no entanto, é um capítulo à parte. Escrita com um rigor cirúrgico, respeitando cada nota, a letra fala de alguém que revira o baú das próprias recordações para tentar pintar em uma tela o rosto da mulher amada – que, obviamente, está distante (“Tento capturar aqueles olhos/ eles estão perdidos para mim, para sempre/ eles sorriem para outro alguém./ (...) Então, isso tem que ser pintado de memória”). A delicada (e excepcional) melodia, de uma tristeza sem fim, seria capaz de comover até mesmo um tijolo. Se os seus olhos encherem d'água ao ouvir essa canção, não se constranja – anormal seria se isso não acontecesse. A supracitada “God Give Me Strength” fecha os trabalhos.
Sinatra poderia vir a gravar uma dessas canções
Painted From Memory recebeu, na ocasião de seu lançamento, as mais entusiasmadas críticas de veículos de todas as partes do mundo, inclusive do Brasil. É provável que Frank Sinatra – que, coincidentemente, faleceu meses antes desse álbum ser lançado – talvez viesse a gravar uma dessas faixas. Na verdade, é espantoso que Tony Bennett, por exemplo, ainda não tenha feito isso.
Contud, ainda mais espantoso (será que deveríamos realmente nos espantar com isso, considerando como raciocinam as gravadoras?) é constatar que um trabalho desse calibre encontra-se atualmente fora de catálogo no Brasil.
Mas não se aflija: as “importadoras” estão aí para isso mesmo...
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Veja o vídeo de “God Give Me Strength”:
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