Zii e Zie (Universal Music)
2009
Compositor baiano tenta ‘atualizar’ o gênero em ‘Zii e Zie’, disco repleto de referências ao Rio
Quase três anos após o seu último disco de estúdio, o controverso Cê, Caetano Veloso está de volta com Zii e Zie (Universal). Nesse intervalo, o artista baiano editou Multishow: Cê ao Vivo (2007) e Roberto Carlos e Caetano Veloso e a Música de Tom Jobim (2008), ambos disponíveis em CD e DVD.
Com o subtítulo de Transambas Transrock, o álbum foi gravado a partir do show Obra em Progresso, que gerou também um blog homônimo. Em obraemprogresso.com.br eram disponibilizados vídeos das músicas inéditas executadas no palco, e Caetano – que participava ativamente do site – “trocava ideias” com os internautas acerca das canções e outros assuntos.
Zii e Zie, a exemplo do trabalho anterior, foi gravado na companhia da ótima bandaCê, formada por Ricardo Dias Gomes (baixo), Marcelo Calado (bateria) e Pedro Sá (guitarra). Desse modo, as comparações com o seu antecessor são inevitáveis. A sonoridade permanece indie, “econômica”, o que assegura bons arranjos em rigorosamente todas as faixas. Pode-se dizer, portanto, que Zii e Zie e Cê, são discos “irmãos”.
Contudo, se nem os irmãos são iguais... as diferenças entre as dois CDs são muitas.
Recentemente, o autor de “Oração ao Tempo” chegou a classificar Cê como um “disco de heterônimo”. Já o novo trabalho já soa, efetivamente, como um álbum-de-Caetano-Veloso. Mas não o Caê “solene” e “camerístico” de Fina Estampa, com cordas arranjadas por Jacques Morelenbaum. E, sim, o Caetano-com-a-bandaCê.
O que faz uma grande diferença.
Semelhanças e dessemelhanças com ‘Cê’
A insuspeitada “pegada” roqueira do CD de 2006 aparece de maneira menos intensa em Zii e Zie, onde há maior diversidade rítmica. Exemplo disso é a eficiente “A Cor Amarela”, com ecos de samba de roda – na medida em que a bandaCê consegue soar como tal. A letra é bobinha (“Uma menina preta de biquíni amarelo / na frente da onda. / Que onda, que onda, que onda que dá, / que bunda, que bunda.”), mas... quem se importa?
Outra dessemelhança: os versos íntimos, sexuais e, eventualmente, raivosos de Cê dão lugar ao Caetano que sempre tem opinião sobre tudo e sobre todos, e cita personagens tão díspares quanto Lula, Fernando Henrique Cardoso, Guinga, Francisco Alves, Los Hermanos, Kassin e Seu Jorge. No entanto, uma certa melancolia permanece nas letras.
A expressão que dá título ao álbum significa, em italiano, “tios e tias”. O compositor explica que “no Rio, somos todos chamados assim ‘pelos malabaristas de sinais de trânsito’”. O Rio de Janeiro, aliás, é a principal temática do CD, repleto de polaroides da cidade, como a crua “Perdeu”, espécie de “releitura contemporânea” de “Meu Guri”, de Chico Buarque, que conta a estória – história? – de um garoto do morro que se tornou chefe do narcotráfico.
A Cidade Maravilhosa (bem, já não tão “maravilhosa” assim...) também é retratada na boa “Lapa”, ode ao famoso bairro boêmio, e “Falso Leblon”, na qual o artista baiano fala sobre uma menina doidaça que convida para “dar uma e dar dois”.
Zii e Zie está repleto de bons momentos, como “Por Quem”, linda melodia um tanto prejudicada pelo registro vocal em falsete do cantor. “Diferentemente” é outra bela melodia que tem um quê de... chorinho – ou seria “transchorinho”? Tocada em público pela primeira vez no show A Foreign Sound, de 2004, a inteligente letra cita Madonna, Condoleeza Rice e... Osama Bin Laden.
Na linha discursiva de “Haiti”, há “Base de Guantánamo”, rap placebo acerca da famigerada prisão americana situada na ilha de Fidel Castro, sob um ritmo que lembra um “ponto” de candomblé: “O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano / é por demais forte, simbolicamente / para eu não me abalar”.
‘Transamba’ funciona nas duas canções não-autorais
Entretanto, a melhor faixa do disco é a curtinha (apenas dois minutos e meio) bossa – ok: “transbossa” – “Sem Cais”. A letra fala da possibilidade de amar, a despeito de qualquer contingência etária (“‘Inda’ posso me apaixonar”), e possui um bom trabalho de guitarra, cortesia de Pedro Sá, coautor da música.
Mas é justamente nas duas canções não-autorais do CD que o “transamba” encontra a sua mais completa tradução. “Incompatibilidade de Gênios”, primoroso samba de João Bosco e Aldir Blanc tem preservada a malandragem (no melhor sentido) típica do gênero, mas foi executada com o tal “timbre elétrico forte” buscado por Caetano – tem até solo de guitarra (!). O mesmo vale para a singela “Ingenuidade”, de Serafim Adriano. Curiosidade: as duas faixas integram o disco que Clementina de Jesus lançou em 1976.
Infelizmente, as desnecessárias provocações, a exemplo de “Homem” e da lusa “Porquê?” – ambas do álbum anterior – também se fazem presentes em Zii e Zie. É o caso da constrangedora “Tarado ni Você”, que cita “Nosso Estranho Amor” (“Deixa eu gostar de você.”). E também de “Lobão Tem Razão”, fraca, apesar do verso lapidar (“‘Chega de verdade’, é o que a mulher diz”). A canção é uma resposta a “Para o Mano Caetano”, que o Grande Lobo editou em Uma Odisseia no Universo Paralelo, gravado ao vivo em 2001.
Portugal, aliás, é novamente mencionado nesse álbum, na animadinha “Menina da Ria”, que fala maliciosamente sobre um... er, “púbis glabro”.
De qualquer forma, Caetano Veloso, em sua aventura indie, continua mestre em fazer justamente aquilo que não se espera dele. Entre (pouquíssimos) erros e (muitos) acertos, ele, mais uma vez, surpreende. E, francamente, dá gosto ver tamanha inquietação vinda de um artista prestes a completar 67 anos de idade.
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