sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Caetano Veloso: eu digo sim


CD Multishow: Cê ao Vivo (Universal)
2007


Resenha publicada originalmente no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 137 (outubro de 2007).


CD ao vivo registra a turnê que Caetano Veloso realizou para promover o seu controverso álbum

Como quase sempre acontece em se tratando de Caetano Veloso, seu mais recente disco, , foi um trabalho polêmico. Apesar do consenso de que dificilmente um artista contemporâneo de Caê desejaria - ou, principalmente, conseguiria - realizar um álbum tão arrojado, as opiniões (sempre superlativas) sobre a bolacha se dividiram: houve quem adorasse o disco; e também quem reagisse de forma contrária. Esse humilde escriba que vos tecla está incluído no segundo grupo.

A despeito de ter seus (poucos) bons momentos, como “Minhas Lágrimas”, as composições - o calcanhar-de-Aquiles do trabalho - alternaram, de um modo geral, auto-indulgência (“Musa Híbrida”) e tola provocação (“Homem” e “Porque?”).

Iniciou-se, entretanto, a temporada de shows. Com isso, a apresentação realizada precisamente no Dia dos Namorados desse ano na Fundição Progresso foi a escolhida para ser registrada em CD (17 faixas) e DVD (a ser editado agora em outubro, trazendo a íntegra do espetáculo), sob o título Multishow: Cê Ao Vivo. E a verdade é uma só: a exemplo de Estrangeiro e Circuladô, Caetano prossegue a sua tradição de shows memoráveis.

Acompanhado do brilhante trio que gravou (o guitarrista Pedro Sá; o baterista Marcelo Callado; e o baixista/tecladista Ricardo Dias Gomes), o baiano apresentou um espetáculo minimalista, enxuto, contraponto exato à grandiloqüência de shows como Fina Estampa e Livro Vivo. E, com isso... acertou em cheio.

Impossível deixar de reconhecer: até mesmo canções com imagens mal resolvidas como “Outro” (“você nem vai me reconhecer, quando eu passar por você/ de cara alegre e cruel, feliz e mau como um pau duro/ acendendo-se no escuro/ cascavel/ eriçada na moita, concentrada e afoita”) e “Rocks” (“tu é gênia, gata, etc/ mas foi mesmo rata demais/ meu grito inimigo é 'você foi mór rata comigo'”), ao vivo, ganharam punch. E o refrão de “Odeio” (que possui um grande arranjo, diga-se de passagem) foi cantado em uníssono pela multidão, em um espetáculo, no mínimo... bizarro.

O blues “Como Dois e Dois”, cedido a Roberto Carlos em 1971, finalmente ganha (boa) versão do autor. A faixa trazia uma mensagem política, ainda que cifrada, contundente para a época, falando do exílio (“quando você me ouvir cantar/ venha, não creia, eu não corro perigo/ (...) estou longe e perto”), da mordaça imposta pela “força bruta” (“tudo vai mal, tudo/ tudo é igual quando canto e sou mudo”) e, em linhas gerais, do momento que o país atravessava (“tudo em volta está deserto/ tudo certo - como dois e dois são cinco”).

Na verdade, existem muitas canções que Caetano entregou a outros intérpretes e jamais gravou. Exemplos: as singelas “Sim, Foi Você” e “Tá Combinado”, além de “Quero Ficar com Você” e, claro, a linda “Força Estranha”.


Show apresenta repertório basicamente autoral

Os jovens músicos da banda de Caetano criaram uma sonoridade atualizada para antigos sucessos como “Sampa”, “London, London” e “Fora da Ordem”. Destaque para o instrumentista inventivo que é Pedro Sá - em especial, nas intervenções de sua guitarra wah-wah em “Desde que o Samba é Samba”, arejando o gênero.

(Mas é importante lembrar que Lulu Santos já havia utilizado esse recurso em “Ny Popoya y Papa”, do álbum Normal, de 1985).

Outro ponto alto do show é “Não me Arrependo”. Próxima do universo popular de artistas como Peninha e Fernando Mendes, a dilacerada canção (de caráter documental), que examina os destroços do fim de um relacionamento, não bate nas primeiras audições. Contudo, cresce de maneira monumental como seus arabescos executados ao vivo. Destaque para o verso em que o artista - como diriam os antigos, “com lágrimas na voz” - refere-se aos filhos (“vejo essas novas pessoas que nós engendramos em nós/ e de nós”).

A única inédita do espetáculo, “Amor Mais que Discreto”, cita “Ilusão à Toa” de Johnny Alf. Canção de temática gay inspirada no chamado “modelo grego” (o relacionamento entre um ancião e um rapaz - saiba mais clicando aqui), a faixa não ficou pronta a tempo de entrar no disco de estúdio [nota: consta que, na Grécia Antiga - especialmente na cidade de Atenas -, os pais entregavam deliberadamente os seus filhos adolescentes à “tutela” de homens mais velhos, acreditando que somente dessa forma, “na prática”, eles iriam adquirir experiência sexual]. No repertório estruturado em canções autorais, foi incluída apenas uma composição de lavra alheia: “Chão da Praça”, de Moraes Moreira.

Caetano aproveitou para resgatar do álbum Velô (1984) uma pérola obscura: “O Homem Velho”, dedicada a seu pai e a Mick Jagger. Já “You Don't Know Me”, faixa do histórico álbum Transa, fecha o CD, com direito a todas as citações contidas em sua versão original, de 1972 (“Reza”, de Edu Lobo e Ruy Guerra; “Maria Moita”, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes; “Hora do Adeus”, de Luiz Gonzaga; e “Saudosismo”, do próprio Caê).


“Vivo, muito vivo”

Em cima de um palco, Caetano Veloso está, artisticamente - como ele mesmo diz na clássica “Nine Out Of Ten” -, vivo, muito vivo. Aliás, é impactante ouvir aquele senhor de cabelos grisalhos (apesar da indumentária e dos movimentos bem joviais) cantando os versos “I know that one day I must die/ I'm alive” [“sei que um dia morrerei/ estou vivo”]. Observando por esse prisma, a grande ausência do roteiro desse show foi “Oração ao Tempo”, que discorre com poesia acerca da passagem dos anos.

Recentemente, Caetano declarou que pretende gravar mais um álbum de estúdio na companhia dos músicos dessa turnê. Espera-se que, no próximo trabalho, o repertório esteja à altura daquele autor tão respeitado e admirado. Isso, no entanto, é porvir. O que importa nesse momento é a constatação de que Cê ao Vivo tornar-se-á um paradigma na carreira de Caetano Veloso - assim como Araçá Azul, por razões diferentes. E que, hoje, vim dizer “sim” a Caê.

E digo.

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