sábado, 3 de fevereiro de 2007

Chico Buarque: "Cidade Maravilhosa, és minha..."

CD 
Carioca (Biscoito Fino)
2006 


Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 123 (julho de 2006).





O mais recente CD de canções inéditas de Chico Buarque, o excelente As Cidades, foi lançado em... 1998. Isso não significa, contudo, que o artista esteve ocioso: neste hiato, Chico lançou um álbum gravado em sua última turnê (Chico ao Vivo, duplo, 1999); uma trilha para teatro (Cambaio, 2001, em parceria com Edu Lobo); dois DVD's ao vivo (Chico e as Cidades, 2001; e O País da Delicadeza Perdida, 2003); um livro (o ótimo romance Budapeste, 2003) e três caixas de DVD's - cada qual contendo três títulos - com documentários e clips extraídos de apresentações na TV.

De qualquer forma, Carioca - o seu primeiro lançamento pela gravadora Biscoito Fino - vem, portanto, dar fim a qualquer indício de... (para usar um termo moderno) jejum. O trabalho inteiro soa como uma suíte de versos (lúcidos: ora críticos, ora exultantes) e sons referentes à Cidade Maravilhosa - daí o título do álbum ser mais do que adequado. E é interessante observar a recorrência do tema em sua obra: o disco anterior era iniciado por uma bela canção também intitulada... "Carioca".

Em entrevista recente, Chico afirmou que "não apenas no disco, mas também nas entrevistas, levanto questões para serem discutidas". E isso é cristalino já nas duas primeiras faixas. "Subúrbio" que abre os trabalhos, toca em um ponto interessante: quem mora no município do Rio de Janeiro sabe que todas as localidades situadas para trás do Túnel Rebouças, lamentavelmente... é como se, de certo modo, não pertencessem à cidade - exceção feita ao Estádio do Maracanã. E Chico, ainda que de forma eventualmente idílica, cede a palavra à periferia carioca, numa espécie de pós-Gente Humilde (letra de Vinícius de Moraes e Chico sobre ancestral melodia do violonista Garoto, célebre na voz de Ângela Maria e já gravada até por Renato Russo). Uma atitude louvável - sobretudo vinda de um artista que reside na Zona Sul do Rio.

Na faixa que a sucede, "Outros Sonhos", a insólita narrativa abre o debate acerca da legalização da maconha - e não descriminalização, o que já ocorre hoje em países como Portugal, por exemplo. A letra, literalmente, viaja:

"De noite, raiava o sol, que todo mundo aplaudia;
Maconha só se comprava na tabacaria;
Drogas, na drogaria...".

Chico Buarque permanece na sua convicção pela canção tradicional, passeando pelo samba ("Dura Na Queda", feita para - e sobre - Elza Soares), baião ("Ode Aos Ratos", já gravada em Cambaio, onde é curioso vê-lo se aventurando em um rap-repente), choro ("Bolero Blues"), bossa ("Ela Faz Cinema", que seria, digamos, xipófaga da faixa que a antecede, "As Atrizes"), valsa ("Porque Era Ela, Porque Era Eu") e afins. Talvez por essa opção, Carioca, de um modo geral, não desfrutou de uma recepção lá muito amistosa por parte de determinados setores da chamada crítica... especializada. Houve quem dissesse que, "oito anos depois, lançou o mesmo disco". É compreensível: possivelmente estaria aí embutido o anseio de ouvi-lo soar como... O Rappa.

E também foi dito que não haveria nesse álbum "nenhum clássico para o cancioneiro" do compositor. Lamento discordar. Contudo, há, sim: "Renata Maria", registrada inicialmente por Leila Pinheiro em seu CD Nos Horizontes Do Mundo, com participação do próprio Chico. Primeira parceria deste com Ivan Lins, a música é um primor de arranjo (que emula a exuberância praiana da definitiva "Futuros Amantes", de Paratodos, 1993), com harmonia e melodia (de Ivan) irretocáveis, emoldurando as imagens fantásticas da letra de Chico, utilizando a clássica temática bossa-novística do sujeito-deslumbrado-com-a-mulher-gostosa-na-praia :

"...tudo o que não era ela se desvaneceu:
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês;
Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar;
Pássaros cristalizados no branco do céu.
(...) Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar...".

Carioca oferece ainda iguarias como a valsa "Imagina", melodia altamente complexa - uma das primeiras compostas por Antônio Carlos Jobim, isso em 1947 -, que fecha o álbum, com a participação da cantora Mônica Salmaso e do pianista Daniel Jobim, neto do Maestro Soberano. Letrada (com incrível precisão, diga-se) por Chico em 1983, para a trilha do filme Para Viver Um Grande Amor - onde foi gravada por Djavan e Olívia Byington -, somente agora recebe registro em sua voz. Além do CD simples, há também uma versão que traz um DVD bônus com um documentário (com aproximadamente 60 minutos de duração) sobre os bastidores da gravação, intitulado Desconstrução, mostrando um bem-humorado Chico no estúdio.

Segundo o próprio compositor, sua produção musical hoje é bissexta em decorrência da maior elaboração de suas harmonias e melodias. Embora mais reverenciado como um letrista genial - que, de fato, é -, a verdade é que a musicalidade de Chico Buarque atingiu o nível de nomes como o do já mencionado Edu Lobo, por exemplo. Em contraste com a infertilidade autoral de seus congêneres nos últimos dez anos, ele se reafirma, de modo inconteste, como o mais inspirado dos chamados medalhões da MPB.

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