sábado, 3 de março de 2007

Legião Urbana: os 20 anos do "Dois"

CD Dois (EMI)
1986


Artigo publicado no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 127 (novembro de 2006).



Em face dos dez anos de falecimento de Renato Russo, menos lugar-comum do que falar sobre a biografia do músico, causa-mortis, o legado de sua obra - enfim, aquilo que todos já sabem -, é observar outra efeméride: Dois, considerado por muitos o melhor álbum da Legião Urbana, completa em 2006 duas décadas de lançamento.

Com influências claras de U2 e Sex Pistols, a banda vinha de uma ótima estréia em disco, o visceral Legião Urbana (1984), que emplacou várias faixas nas FMs do país, como "Será", "Ainda é Cedo" e "Geração Coca-cola" (curiosidade: após a bela versão de "Por Enquanto" que Cássia Eller registrou em seu primeiro álbum, 1991, as rádios passaram a tocar a gravação original da Legião que, cinco anos depois, tornou-se, inesperadamente, um sucesso).

Mas a proposta para Dois era outra. Renato Russo declarou, anos depois, em entrevista: "quando gravamos nosso segundo disco, estávamos sofisticadíssimos, ouvindo Joy Division, coisas assim". De fato, o espectro da célebre banda de Manchester é perceptível em vários momentos do álbum - e isso acabou significando um avanço em relação ao trabalho anterior (é sabido que Ian Curtis, um dos ídolos de Renato, o influenciou até no modo de cantar). E o produtor Mayrton Bahia não economizou em riqueza de detalhes - até então, não havia surgido no Brasil um trabalho, do ponto de vista sonoro, tão minucioso.

As letras tornaram-se menos adolescentes, com imagens mais complexas, como em "Daniel Na Cova Dos Leões", cujos versos iniciais falam sobre sexo oral ("aquele gosto amargo do teu corpo/ ficou na minha boca por mais tempo..."). "Acrilic On Canvas" usa, de modo poético, elementos relacionados às artes plásticas (ponto de fuga, carvão, luz & sombra) para falar da saudade que restou de um relacionamento destruído.

A questão da inadequação do indivíduo com o mundo - talvez a principal temática da Legião Urbana - aparece na sensível "Andrea Doria", um dos pontos altos do álbum. Na letra, um eu-lírico reflexivo dirige uma palavra de encorajamento e esperança uma menina plena de desânimo, a suposta Andrea Doria (que, na verdade, é o nome de um transatlântico genovês que naufragou em 1956, quando navegava para Nova York): "às vezes, parecia que era só improvisar / e o mundo, então, seria um livro aberto...".

A preocupação socio-política e ambiental é a tônica da veemente "Fábrica", assim como a violência (física e psicológica) característica dos grandes centros urbanos - e a maneira como as pessoas se habituam a essa violência, chegando a ponto de... saboreá-la - é retratada na quase punk "Metrópole" e na dylanesca "Música Urbana 2". E, a essa altura, o que mais se pode sobre o libelo "'Índios'"?

Mas a Legião também se permitiu um momento de descontração, na letra quilométrica de "Eduardo e Mônica", prenúncio do sucesso estrondoso que "Faroeste Caboclo" faria pouco mais de ano depois (embora essa última tenha sido composta antes) e na bela "Quase Sem Querer", regravada por Zélia Duncan em seu álbum Acesso, 1998.

Boa parte da respeitabilidade conquistada pela geração surgida nos anos 80 deve-se incontestavelmente a Dois (assim como a Ideologia, Selvagem?, Cabeça Dinossauro e outros). Depois de um álbum com esse grau de esclarecimento - um verdadeiro documento de uma era e de uma geração - , quem teria a arrogância de dizer que o rock brasileiro era "uma bobagem de filhinhos de papai"?

Por outro lado, não deixa de ser tristemente irônico o fato de que Renato Russo desapareceria exatos dez anos após ter perpetuado no imaginário de um número tão expressivo de pessoas os versos do clássico "Tempo Perdido":

"...temos todo o tempo do mundo..."

Nenhum comentário: