sábado, 3 de março de 2007

O auto-reconhecimento do Brasil

Artigo publicado no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



Essa, provavelmente, não é a tese adequada para se levantar em uma publicação que, apesar do olhar diversificado (o qual me capturou, a princípio, como leitor, há exatos onze anos) tem ênfase no pop-rock mas, enfim..

Em função de determinados posicionamentos na sua política externa (que, convenhamos, a essa altura já não precisam mais ser mencionados), os Estados Unidos da América conseguiram angariar a antipatia de parcela significativa da população mundial. E, aliás, merecidamente. Mas devemos admitir pelo menos UMA característica interessante dos norte-americanos: eles não se constrangem pelo seu lado interiorano. Pelo contrário - parecem se orgulhar disso: a figura icônica do cowboy, com seu chapéu, botas, etc.. Quando eles falam em "nação forte e indivisível", parecem querer juntar os arranha-céus de Manhattan e os ranchos do Texas no mesmo abraço. E é curioso observar essa tendência na seara em que transitamos nesse veículo: a música.

(Interlúdio: o chapéu de cowboy, aliás, é um símbolo tão expressivo, que se tornou comum observarmos os astros do rock recorrendo a ele: o Queen, nos anos 70; Bob Dylan, sempre; The Edge (do U2), na turnê Pop, e por aí vai).

Um dos maiores artistas da terra do Tio Sam, Bruce Springsteen, possui um discurso que tem a mesma relevância para o cidadão urbano e para o rural. Consideremos também que um dos grandes ídolos americanos desde sempre, era um caipira de Memphis, tido até como Rei: Elvis Presley que, na verdade, tirou muito de sua musicalidade dos negros que trabalhavam nos canaviais do delta do rio Mississipi. A mesma influência foi exercida sobre os jovens ingleses dos anos 60, que se apaixonaram pelo blues: entre eles, Jimmy Page e Eric Clapton - este último, aliás (além de ter se tornado uma autoridade do gênero), sempre grava uma canção country a cada novo CD.

Os Rolling Stones também enfiaram as botas no esterco ("Got to scrape this shit right off your shoes, em "Sweet Virginia", do fundamental Exile On Main Street, de 1972). E até os Beatles se aventuraram no country: "I've Just Seen a Face", de Help (de 1965), música regravada pelo autor Paul McCartney já por três vezes (Wings Over America, de 1976; MTV Unplugged, de 1991; e no DVD At Red Square, de 2005).

Na verdade, vários artistas (não obrigatoriamente americanos) discorrem com desenvoltura sobre o pó da estrada e afins - na verdade, muitos até pautam suas carreiras nesse tema, como Neil Young, Eagles, ZZ Top, Bon Jovi, e outros.

Aqui no Brasil, entretanto (com raras exceções) a mentalidade vigente é…. cosmopolita, urbana - o que acaba soando efetivamente arrogante. Isso talvez pelo fato de o cotidiano em um grande centro urbano como o Rio de Janeiro - belíssima cidade onde nasci - ser, na verdade... limitado (por mais chocante e absurda que possa parecer essa afirmativa), porque se resume, basicamente, em engarrafamento - escritório - web - engarrafamento - shopping - engarrafamento - praia. E, quando se pega a estrada, o destino é.... praia também, claro - só que, mais distante.

Existe um deboche em torno da famosa canção de Tonico & Tinoco, "Menino da Porteira" ("Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino..."), mas poucos sabem o que é... atravessar uma porteira. Assim como a grande maioria (parece até piada) conhece apenas leite em pó ou em caixa - nunca bebeu leite saído direto da vaca. Ou, pior ainda: muita gente nunca viu de perto... uma vaca - se tanto, na capa do Atom Heart Mother, do Pink Floyd. E, lamentavelmente, muitos jamais tiveram qualquer interesse pela literatura de João Guimarães Rosa, um dos maiores tesouros que a cultura nacional possui.

Para não sair do foco musical: certamente, um número grande de pessoas não assistiu Os 2 Filhos de Francisco, por duas razões: a) por não gostar da dupla goiana, obviamente; b) pelo fato de que a história se passa no sertão (a exemplo de Central Do Brasil, O Auto Da Compadecida, Eu, Tu, Eles e outros filmes nacionais) e, portanto, esse ambiente não "fazia parte do universo" delas.

Recentemente, Roberto Carlos foi criticado por ter gravado "Coração Sertanejo", a guarânia "Índia", e por ter chamado Chitãozinho & Xororó para cantar no seu álbum do ano passado. Tentativa de ampliar o mercado, visando atingir as camadas populares? Discordo totalmente. Presume-se que RC (o mesmo vale para Chico Buarque, que gravou recentemente uma participação no mais recente CD de Zezé di Camargo & Luciano) deve saber que o verdadeiro cerne de uma nação, apesar de todo o avanço tecnológico dos dias atuais, se encontra em suas regiões mais recônditas, longe das grandes avenidas.

Conclusão dessas mirabolantes divagações: o Brasil precisa se reconhecer, como sendo um país latino, lusófono (e essa reflexão até merece outro artigo), de tez mestiça e - como qualquer adolescente ginasiano pode constatar, olhando um bom Atlas Geográfico - com inconteste predominância de áreas rurais em seu território.

E isso não pode ser desprezado.



TOM NETO é colaborador do IM - INTERNATIONAL MAGAZINE. Entre uma água-de-coco na beira da estrada na Serra das Araras e um chopp no tumulto da praça de alimentação de um shopping center, pergunte o que ele prefere...

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